w.c constrangido

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sexta-feira

A Mãe


Não fica cá ninguém para abrir a porta. 

E riamo-nos, chorávamos e riamo-nos, eu chorava para dentro a rir-me e ela ria-se para fora a chorar. Com o sofrimento a doença trouxera também um apurado e singular humor: provérbios, dizeres populares, palavras que ela própria inventava para manifestar os seus estados de alma e que implicitamente me alimentavam o imaginário.

É um quê? 
Um tramalazana!

E eu, respaldado pelo seu arbítrio, apontava fielmente no livro do deve e do haver como se estivesse aprender um novo idioma.

Mas era naquela constância absoluta pelas coisas, num omnímodo e inocente amor de Mãe,  - inteira - , numa sábia e discreta serenidade, quase imperceptível, que ela, sem querer, se aurelava de uma força umbilical para enfrentar o horizonte incerto dos dias. Tivera na doença um dos seus grandes desafios, concomitante ao de ser Mulher e Mãe, e o viático iria ser implacável, ao mesmo tempo catártico, iriam exigir de si uma abnegação incondicional, onde seria impossível desistir.

A vida não estava para ser entendida, mas sim para ser vivida.

Que ventania!... 

As pequenas grandes coisas.

Que viesse a doença, a dor, que viesse a morte, mas manifestações violentas da natureza, é que não. Ainda assim, era este intimo medo de criança que lhe dava um sentido real da vida; relativizava-a. E até a impertinente falta de um dente, que a atrocidade dos tratamentos fizera cair, não lhe deixara retirar o equilíbrio das horas. Sim, era uma mulher bonita e não queria obviamente perder esse estatuto. Não era agora um dente que iria por tudo em causa. E no paroximo da doença, confessava:

Amanha vou ao dentista.

Ensinara-me a ser filho. E ser filho tinha as suas exigências. Olhava-me por um dos flancos de sua cama, examinava-me de cima a baixo, mandava-me ajeitar a camisa, pentear o cabelo, comer mais, avisar quando chegasse da viagem, e eu obediente respeitava. Hipnotizado, movido por uma misteriosa força materna, acatava as suas ordens como se ainda estivesse sobre sua asa tutelar. Mas eu, mais que nunca, era agora a panaceia para o seus males.

Quando vens? 

Esperava-me num impaciente cilício dos dias. Contava-os, esperava os fins de semana, os dias santos, os aniversários, adiava tratamentos, falava com o médico, dizia que o filho vinha amanhã... E quando eu finalmente chegava, era o refrigério de tanta espera.

A onde vamos? 
A onde quiseres ir tu... 

E íamos sem destino. De braço entrelaçado no meu, camuflando o avanço da doença, ia-me confessado as peripécias nos hospitais, as tricas domésticas e familiares, falando da vida. Mais que um ouvido, era o filho que a observava agora no mais profundo do seu ser. A doença aproximara-nos, sem dúvida, e eu olhava-a cada vez mais numa urgência sem tempo, amarrado a não sei que força atávica. Ela continuava naquela sua cúmplice serenidade, mantinha aquele doce olhar de Mãe, firme, nas maças do rosto permanecia uma cor rosácea, fecunda, e as mãos, apesar das rugas a tracejarem-lhe o passar dos anos, continuavam naquela fina sensualidade feminina. Não, a morte não podia andar ali.

Regressava em mim mesmo: era criança novamente...

Quando voltas? 

E era num despedir eterno que nos beijávamos, as lágrimas enchiam-se de tempo, e eu aguentava-me firme, numa negação dos sentidos, chorando para dentro. Na minha intimidade negada queria chorar no seu colo, deitar toda a minha infância cá para fora, dizer-lhe que não, que a vida não nos podia separar. Mas não era capaz. Era um filho adulto e não lhe podia mostrar a debilidade de tal avatar. E tentava jogar com as suas próprias palavras, dizer que a primavera aí vinha, os dias começavam a crescer novamente... Mas o que de nós sobra quando a morte já bate à porta? E numa silenciosa convulsão interior, numa revolta contra a grandeza trágica da nossa condição, desejava ser como um bicho, romper os laços maternos com a frieza necessária para que cada um pudesse seguir os seus próprios destinos. Morrermos tal qual um bicho morre: nobre, livre... solitário. 

Mas o instinto era rapidamente suplantado pela razão.

Pensava não te voltar a ver... 

E um dia o mundo pareceu crescer com outra sonoridade. Os pássaros eternos de uma Mãe despertaram a aurora numa agitação serena. Não havia vento. A janela da memória abrira-se...debruçar-me-ia sobre ela para ver a saudade passar.

Seria capaz de ser um filho sem Mãe?